Os ingleses são decididamente diferentes. Assim é que na véspera da
passagem do ano, quando todos tentam se embalar com champanhe e
esperanças, The Economist, seu mais importante semanário e um
dos mais lidos em todo o mundo, circula com uma capa mefistofélica. O
“Breve guia para o inferno” é uma engraçada e elaborada charge onde
diabinhos, diabos e asquerosas criaturas exibem os pecados capitais
interpretados pelos players da cena mundial.
Ninguém escapa: a Luxúria é representada pelo general Petraeus e
Berlusconi, banqueiros são engolidos pelo monstro da Cobiça, Satanás,
diabo-mor, maneja um painel denominado “mudanças climáticas” enquanto
segura a própria capa da revista. O único risonho, Barack Obama, não
obstante ostentar o pecado do Orgulho parece inebriado pela autoestima,
sem reparar no abismo fiscal. Ao fundo, atolado no lodaçal, um camburão
designado como “jornalismo inglês”. A autoflagelação faz sentido: os
editores preferiram poupar o premiê britânico a brigar com o governo.
Ninguém é de ferro.
A virada da ampulheta na segunda-feira, 31/12, será iluminada pelos
fogos de artifício, artificiosos e enganosos, pois o Dia Seguinte já se
prenuncia comprometido. Como numa tela do nosso conhecido Caravaggio, o
claro-escuro está mais escuro do que claro. O apocalipse esquenta em
banho-maria – devagar, infalível.
Pau puro
A crise econômica deixou de ser notícia de jornal, é realidade
palpável, concreta, brutal. Uma generalizada sensação de década perdida
está tirando dos jovens o gosto de começar e, dos velhos, o prazer de
contemplar.
O mundo enrolou – evaporaram-se edens e eldorados, sumiram as doutrinas
messiânicas, as utopias estão aposentadas, emergentes e submergentes
empacaram. A democracia está em crise, a prova é o tremendo aumento das
manifestações de rua; o capitalismo está em crise, a prova é a sua
incapacidade para medicar-se; o socialismo está em crise, a prova é a
sua canibalização pelo corporativismo; o liberalismo está enfezado, a
prova é a submetralhadora debaixo do braço; a religião está em crise, a
prova é o seu apego ao poder temporal.
Isso é grave: os escritores avisam que vão parar de escrever porque
nada mais merece ser contado. Mais grave ainda é o embaçamento do
espelho da crise – a mídia – desconectada pelo excesso de conexões.
A Europa, mostruário da paz, derrubou fronteiras e agora está às voltas
com secessões na Bélgica e na Espanha (a fome espanta qualquer
disposição para a fraternidade). Venezuela, Argentina e Paraguai estão
matando a pauladas o Mercosul sonhado por Bolívar.
Sensação penosa
Os BRICs não são exceção: o estupro de uma jovem na Índia e as
gigantescas manifestações de protesto exibem a enorme distância entre
crescimento e real desenvolvimento. O terror político entranhado na
Rússia é um remake tenebroso e gelado do fascismo mediterrâneo.
Agarrados à doida locomotiva chinesa voamos em direção de monumental
incógnita que chinês algum é capaz de deslindar.
E nós, privilegiados brasilianos, entre apagões e ilusões, mas sempre
abençoados pelos deuses, vamos enfim desfrutar o gosto de viver sob o
manto da lei. Sensação nova, estranha, complicada, penosa, com um travo
do ceticismo no tocante a crimes e castigos. Sem alternativas.
Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed727_o_apocalipse_em_banho_maria
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