Um
agente da Polícia Federal vai ao cartório e apresenta sua versão –que diz
verdadeira– sobre o assassinato da irmã Dorothy Stang, praticado em 2005.
Segundo ele, os fazendeiros presos são inocentes. O culpado é o delegado de
polícia de Anapu. Dá para acreditar?
Houve
muito ódio na execução, na manhã de sábado, 12 de fevereiro de 2005, em Anapu,
no Pará, da missionária americana –naturalizada brasileira um ano antes–
Dorothy Mae Stang. Ela era rija, forte e enérgica, mas era mulher e estava com
73 anos de idade, desgastada por longos anos de permanência no interior do Estado,
em áreas carentes e pobres.
Era
uma religiosa. Podia ser dura quando em defesa daqueles aos quais oferecia sua
proteção, muitas vezes a única de que dispunham. Por isso, irritava os que se
colocavam diante dela, contra o objeto do seu missionarismo. Mas não era
agressiva. Sabendo que sua morte fora encomendada, um dia antes foi, sozinha,
ao acampamento onde estavam os dois pistoleiros contratados para fazer o
"serviço”: Rayfran das Neves Sales, o Fogoió, e Clodoaldo Carlos Batista, o
Eduardo.
Depois
de 33 anos vivendo em situações de tensão e conflito, ela não era inocente nem
ingênua. Mesmo assim, leu para os dois homens, que estavam acampados no meio do
mato, passagens da Bíblia, que sempre carregava consigo. Ofereceu-lhes uma
alternativa para o que iriam fazer. Mas não fugiu nem tomou cuidados especiais
depois desse surpreendente encontro. Deixou a vida seguir sua dinâmica própria.
No
dia seguinte, continuou sozinha onde estava, ao lado do assentamento rural em
Anapu, no vale do rio Xingu, terra cobiçada e disputada por todos os meios. Os
mesmos homens se dirigiram na direção dela. Dorothy tirou da sacola tiracolo a
sua Bíblia e começou a ler. Rayfran avançou e fez o primeiro disparo, contra a
cabeça da missionária. Ela morreu imediatamente. Mas o pistoleiro usou as
outras cinco balas do seu revólver no corpo da sua vítima. Só parou quando já
estava sem munição.
Não
parecia ser apenas a ação de um profissional do gatilho no cumprimento de uma
encomenda mórbida. Parecia haver na sua iniciativa uma motivação subjetiva: de
ódio, de vingança, de acerto de contas. Crivado de balas, o cadáver de Dorothy
Stang devia traduzir uma mensagem: quem a mandou matar não temia ninguém,
confiava no próprio poder e continuaria a sua tarefa de eliminar quem se
colocasse em seu caminho.
Mas
não foi o que se seguiu. Rapidamente surgiram os suspeitos. Os foragidos foram
descobertos e presos. O grupo de investigação, integrado por representantes da
polícia civil, da Polícia Federal, do Ministério Público e do Exército,
concluiu o inquérito antes do prazo de 30 dias que tinha — e que costuma ser
prorrogado por muito mais tempo por falta de resultados concretos.
O
julgamento foi mais célere do que o padrão da justiça no Pará e no Brasil por
causa da repercussão internacional, sobretudo nos Estados Unidos. E as pistas
surgiram quase por derivação da pergunta elementar: a quem interessava o crime?
Ora, aos fazendeiros da região. Com a eliminação de Dorothy, eles imaginavam
acabar com as fontes de resistência dos posseiros, que estavam ocupando cada
vez mais terras, inclusive as consideradas de propriedade particular. Foi só ir
atrás deles a partir dos dois primeiros presos.
A
apuração do crime foi tão excepcionalmente exemplar que a tese da federalização
do caso não prosperou. Se o Estado cumpriu todas as suas obrigações com
celeridade e eficiência, por que transferir o processo para a jurisdição da
União? Não tinha sentido.
O
trabalho do grupo de investigação, comandado pela polícia civil, recebeu o
endosso da Polícia Federal e do seu equivalente nos EUA, o FBI, que acompanhou
as investigações na condição de observador. O resultado foi tão bom que
suscitou a desconfiança da opinião pública, ainda relutante em aceitar que a
relação dos homens –rapidamente identificados e presos– esgotava o rol dos
integrantes do esquema de execução da freira. Tal eficiência podia ser uma
manobra de despistamento, para proteger personagens mais graúdos de mais esse
consórcio da morte, punindo apenas os atores secundários da trama sangrenta.
Essa
hipótese não se confirmou. Ou, ao menos, não foi demonstrada. Mas agora, sete
anos e meio depois, um dos personagens do enredo diz que essa história de final
pronto e acabado é falsa. O agente especial da Polícia Federal Fernando Luiz da
Silva Rayol foi a um cartório de Belém, no dia 14 de junho, ditar uma
"escritura pública declaratória”.
O
documento equivaleria ao depoimento que ele devia ter dado –mas foi impedido de
dar– em 2005 mesmo, no processo judicial que resultou na condenação dos cinco
participantes do assassinato. Rayol teria muito a dizer. Afinal, foi um dos
integrantes do grupo de investigação da morte de Dorothy e até assumiu o
comando das operações.
O
agente da PF disse ter sido motivado a relatar "a verdadeira versão do
assassinato” em cartório por entrevista dada à revista Época por Amair Fajoli,
sentenciado como o intermediário no crime. Sua autoridade para falar a respeito
vinha do fato de ter sido designado para fazer a proteção policial da
missionária, já ameaçada de morte. A convivência de três meses o teria tornado
"amigo íntimo” de Dorothy, ouvindo suas confidências e recebendo suas
informações.
O
alvo principal da declaração de Rayol é o então delegado da polícia civil em Anapu,
Marcelo Luz. Ele mantinha "um esquema de arrecadar propina junto aos
fazendeiros da região para que ele mantivesse os posseiros de Dorothy longe de
suas terras ou em caso de invasão retirá-los”.
A
importância das declarações de Amair (mais conhecido por Tato) à Época se devia
ao fato de que ele "era o elo entre o delegado e os fazendeiros com a
finalidade de fechar o acordo de propina”. Tato havia se queixado aos
integrantes desse grupo, pediu proteção e recebeu do delegado uma arma, "a fim
de proteger-se dos sem terra e da missionária”, que já estaria sabendo "da
função de Tato no esquema de propina”.
O
PF diz que todas as autoridades que participaram da investigação já sabiam "que
Dorothy e seus seguidores passaram a perseguir e efetuar represálias contra
Tato e que este resolveu precaver-se”.
Com
a morte da religiosa, o delegado Marcelo Luz, de imediato, "resolveu por bem,
temerária e precocemente, optar, no sai seguinte do crime, pela representação
da prisão preventiva de um dos fazendeiros, Vitalmiro Bastos de Moura
[conhecido pelo apelido de Bida], antes mesmo de se saber ou as investigações
apontarem quem teria sido o executor e o intermediário do crime”.
Dois
dias depois do assassinato foi decretada a prisão de um representante do
fazendeiro, "antes do executor e do intermediário”. O objetivo do delegado,
segundo Rayol, era "desviar a possibilidade de envolvê-lo no crime, no que diz
respeito à questão da arma, e deslocar para a ação dos fazendeiros locais”.
O
agente da PF esclarece sobre um fato inédito, surpreendente e quase
inacreditável: o consórcio criminoso dos fazendeiros "não era em prol de
assassinar a freira, mas em prol de financiar a proteção corrupta do delegado
local”.
Essa
hipótese surgiu durante as investigações, mas os investigadores optaram "pelo
meio mais fácil e convincente”, que era responsabilizar os fazendeiros, Para
isso, à medida que iam sendo feitas as prisões dos foragidos, as autoridades
iam igualmente "adaptando, plantando e negociando com os interrogados versões
que objetivavam justificar e fundamentar o decreto de prisão anteriormente
exarado contra um dos fazendeiros (Bida), bem como cada vez mais encontrar
motivações para o crime por parte dos fazendeiros da região”.
Em
março de 2010, Rayol foi autorizado a dar entrevista ao jornalista Carlos
Mendes, do Diário do Pará e correspondente de O Estado de S, Paulo, por ter-se
declarado sob ameaça de morte. Aproveitou, na expectativa de repercussão, para
anunciar que as acusações a Bida e a Regivaldo Pereira Galvão, apelidado de
Taradão, "não eram verdadeiras”, e que ambos "eram inocentes”. Os culpados
seriam o delegado de Anapu e seus subordinados, acobertados pela comissão de
investigação do governo.
Segundo
Rayol, Bida disse em seu depoimento que Marcelo Luz "exigia e recebia de cada
fazendeiro local a quantia de R$ 10.000,00 com a finalidade de garantir a
segurança das suas fazendas”. E o detalhe fundamental: Bida teria sido o único
que recusou essa proteção, "uma vez que esse já tinha decisão judicial
garantindo-lhe a reintegração de posse de uma área invadida por Dorothy”.
Quando
Bida fez essa denúncia, o delegado Waldir Freire, que comandava o grupo,
"determinou a retirada imediata” de Marcelo Luz da sala, "objetivando assim
preservar sua pessoa e fortalecendo o corporativismo existente”. Rayol lembra
que Freire prometeu que as informações de Bida seriam rigorosamente
investigadas. Isso nunca aconteceu.
Mas
o próprio Rayol acumulava dados em sustentação da sua tese. Como quando
transportou de volta à sua casa Elizabeth Coutinho, mulher de Amair Feijoli, o
Tato, depois que ela prestou depoimento à polícia. No caminho, Elizabeth lhe
confidenciou, "emocionada”, que um dia antes do assassinato o seu marido
"estava agindo de uma forma estranha, e vendo a arma na cintura do Amair, fato
que nunca tinha presenciado em toda sua vida de casada”, perguntou-lhe por que
ele estava armado e ele lhe respondeu que "a arma seria para a sua própria
segurança contra as ameaças da missionária”. Disse ainda que "jamais imaginava
que seu marido fosse capaz de assassinar alguém”.
Nada
disso influiu na investigação e no julgamento porque, na versão de Rayol, a
história já estava acertada. O que explicaria a visita de um advogado de Amair
à superintendência da Polícia Federal para levar um recado para Bida, que lá
estava preso, ameaçando-o de apontá-lo como o mandante do crime se ele não lhe
desse duas caminhonetes L200.
Beneficiado
pela delação premiada, Tato cumpriu a ameaça. Bida foi preso, mas acabou
conseguindo o benefício do regime semiaberto. Dois dos sentenciados estão em
prisão semiaberta, um em prisão domiciliar e Clodoaldo, o pistoleiro que
acompanhou Fogoió, continua foragido da justiça. É o único nessa condição. Pode
estar livre – ou morto. O único em prisão fechada, na penitenciária de
Altamira, é Reginaldo Galvão.
Os
"fatos novos” revelados por Rayol seriam suficientes para reabrir o caso
Dorothy, sustentou o Diário do Pará do dia 22, ao publicar –com destaque na
primeira página– a matéria, de Carlos Mendes. O principal acusado, agora servindo
em Viseu, contesta. Marcelo Luz diz que as acusações de Rayol são falsas.
Nem
teria tempo para montar o esquema que lhe foi atribuído: chegou em Anapu em
outubro de 2004, quatro meses antes do assassinato da freira. Quem a indiciou
foi seu antecessor na delegacia de Anapu. Pedro Monteiro (referido pelo jornal
apenas pelas iniciais, P. M.): "ele pegava propina antes de eu chegar”, acusou,
ao ser ouvido por Mendes. No entanto, não há qualquer reclamação contra
Monteiro, embora ele tenha recebido "propina alta” para dar cobertura ao dono
de uma fazenda "onde mataram vários trabalhadores”.
Marcelo
disse que dois dias antes da execução da irmã Dorothy, o carro da delegacia
"tinha ido para Belém para fazer a revisão” e que só contava com um escrivão e
um investigador para cumprir sua função. Não podia oferecer garantia alguma aos
fazendeiros, é o que sugere.
A
"versão verdadeira” do agente da PF não é tão verdadeira assim que possa ser
simplesmente aceita. Mesmo que cumpra a salutar missão de reabrir um caso que
ainda tem pontas soltas no seu enredo, o relato de Rayol tem pouca
verossimilhança.
É
claro que sua principal intenção é tirar a responsabilidade dos fazendeiros
Bida e Taradão. Valdomiro foi incriminado por Luz porque rejeitou a proposta de
segurança paga. E Reginaldo é simplesmente um inocente. Mesmo os outros
fazendeiros da região se reuniram não para matar a freira, mas para se defender
de suas investidas.
O
revólver usado na execução de Dorothy era do delegado, que o deu a Tato para
ele se defender da freira e dos seus aliados, que seriam os verdadeiros
agressores dos circunspectos donos de terras. A esposa de Tato jura que ele
nunca fez mal a ninguém e jamais o faria, mas estava nervoso na véspera,
andando armado, com medo de algum ataque. Se Rayol puder desenvolver sua tese,
talvez surja com nova informação: Tato pode ter dado o revólver a Rayfran, que
tomou as dores do amigo. Ou surgirá uma versão ainda mais extravagante?
O
agente da PF age como se fosse personagem imparcial da história, um profissional
que, de tanto testemunhar fatos e absorver informações, decidiu ser um paladino
da verdade e um protetor de inocentes injustiçados por um complô de
autoproteção, um lance de corporativismo.
Mas
Rayol não é esse personagem. Ele foi indicado como testemunha de defesa de Bida
no processo. Só não depôs, como ele próprio declara, porque as autoridades, ao
perceberem a posição que ele iria assumir, mandaram retirá-lo da sala de
testemunhas. Ele se declara amigo de Dorothy, mas iria ficar ao lado de alguém
que, em sua própria versão, a freira sabia que não tinha boas intenções a seu
respeito.
A
história é tão ao gosto dos dois fazendeiros presos, indiciados e julgados como
mandantes do assassinato que uma semana antes de Rayol ir ao cartório registrar
suas declarações, Arnaldo Lopes de Paula, advogado de Bida, o procurou,
supostamente por ter ouvido suas bombásticas declarações numa entrevista que
deu a uma emissora de rádio.
Rayol
confirmou o que dissera e mostrou uma fita com a gravação da entrevista. Dispôs-se
a ir depor em juízo, o que bastou para o advogado requerer ao juiz da 2ª vara
do tribunal do júri para ouvir o depoimento do policial, na presença do
promotor Edson Cardoso. Com mais esse documento, o advogado pretende pedir a
revisão criminal ao tribunal de justiça, com o que o caso Dorothy seria
reaberto para inocentar Bida e Taradão.
O
intrigante é que o agente da PF chegou a essa versão nova sozinho, enquanto os
outros participantes do grupo de investigação tiveram conclusão distinta. Rayol
sustenta que a versão criada para a condenação dos acusados era nada menos do
que uma manobra para proteger o delegado corrupto. Mas o outro agente da PF no
grupo, Ualame Filho, e os procuradores estaduais de justiça Saulo Brabo e Lauro
Freitas, se prestaram a essa farsa? Ou este papel quem o está desempenhando é o
próprio Rayol?
De
qualquer modo, sua inconvincente história bem que poderia levar as autoridades
a checá-la. No mínimo, conseguirão novas informações sobre o assassinato e o
papel do poder público, em particular da polícia, nesse tipo de ocorrência. Os
fazendeiros conseguiram se livrar de uma adversária difícil, mas é pouco
provável que a sociedade tenha sequer identificado seus maus representantes na
trama. É por isso que esses exemplos de brutalidade, uma vez cessada a onda de
indignação e protesto, não conseguem servir de indutor das mudanças
necessárias.
A
solidariedade mundial pela irmã Dorothy Stang forçou o poder público a dar
respostas ao crime. O governo federal foi rápido, deixando um vácuo para a
administração estadual paraense. Além das providências de praxe nessas
circunstâncias, prometeu instalar uma espécie de gabinete federal da
presidência em Belém (ou Altamira, não chegou a definir) e interditar áreas
conflituosas (abrangendo 8,2 milhões de hectares), dentre as quais 3,7 milhões
de duas novas unidades ecológicas na região conflagrada da Terra do Meio.
Nada
disso foi feito. O sacrifício de irmã Dorothy foi em vão?
Fonte: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&langref=PT&cod=69399
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