quinta-feira, 16 de agosto de 2012

‘Caso Dorothy’. Quem esteve por trás?

Um agente da Polícia Federal vai ao cartório e apresenta sua versão –que diz verdadeira– sobre o assassinato da irmã Dorothy Stang, praticado em 2005. Segundo ele, os fazendeiros presos são inocentes. O culpado é o delegado de polícia de Anapu. Dá para acreditar?
Houve muito ódio na execução, na manhã de sábado, 12 de fevereiro de 2005, em Anapu, no Pará, da missionária americana –naturalizada brasileira um ano antes– Dorothy Mae Stang. Ela era rija, forte e enérgica, mas era mulher e estava com 73 anos de idade, desgastada por longos anos de permanência no interior do Estado, em áreas carentes e pobres.
Era uma religiosa. Podia ser dura quando em defesa daqueles aos quais oferecia sua proteção, muitas vezes a única de que dispunham. Por isso, irritava os que se colocavam diante dela, contra o objeto do seu missionarismo. Mas não era agressiva. Sabendo que sua morte fora encomendada, um dia antes foi, sozinha, ao acampamento onde estavam os dois pistoleiros contratados para fazer o "serviço”: Rayfran das Neves Sales, o Fogoió, e Clodoaldo Carlos Batista, o Eduardo.
Depois de 33 anos vivendo em situações de tensão e conflito, ela não era inocente nem ingênua. Mesmo assim, leu para os dois homens, que estavam acampados no meio do mato, passagens da Bíblia, que sempre carregava consigo. Ofereceu-lhes uma alternativa para o que iriam fazer. Mas não fugiu nem tomou cuidados especiais depois desse surpreendente encontro. Deixou a vida seguir sua dinâmica própria.
No dia seguinte, continuou sozinha onde estava, ao lado do assentamento rural em Anapu, no vale do rio Xingu, terra cobiçada e disputada por todos os meios. Os mesmos homens se dirigiram na direção dela. Dorothy tirou da sacola tiracolo a sua Bíblia e começou a ler. Rayfran avançou e fez o primeiro disparo, contra a cabeça da missionária. Ela morreu imediatamente. Mas o pistoleiro usou as outras cinco balas do seu revólver no corpo da sua vítima. Só parou quando já estava sem munição.
Não parecia ser apenas a ação de um profissional do gatilho no cumprimento de uma encomenda mórbida. Parecia haver na sua iniciativa uma motivação subjetiva: de ódio, de vingança, de acerto de contas. Crivado de balas, o cadáver de Dorothy Stang devia traduzir uma mensagem: quem a mandou matar não temia ninguém, confiava no próprio poder e continuaria a sua tarefa de eliminar quem se colocasse em seu caminho.
Mas não foi o que se seguiu. Rapidamente surgiram os suspeitos. Os foragidos foram descobertos e presos. O grupo de investigação, integrado por representantes da polícia civil, da Polícia Federal, do Ministério Público e do Exército, concluiu o inquérito antes do prazo de 30 dias que tinha — e que costuma ser prorrogado por muito mais tempo por falta de resultados concretos.
O julgamento foi mais célere do que o padrão da justiça no Pará e no Brasil por causa da repercussão internacional, sobretudo nos Estados Unidos. E as pistas surgiram quase por derivação da pergunta elementar: a quem interessava o crime? Ora, aos fazendeiros da região. Com a eliminação de Dorothy, eles imaginavam acabar com as fontes de resistência dos posseiros, que estavam ocupando cada vez mais terras, inclusive as consideradas de propriedade particular. Foi só ir atrás deles a partir dos dois primeiros presos.
A apuração do crime foi tão excepcionalmente exemplar que a tese da federalização do caso não prosperou. Se o Estado cumpriu todas as suas obrigações com celeridade e eficiência, por que transferir o processo para a jurisdição da União? Não tinha sentido.
O trabalho do grupo de investigação, comandado pela polícia civil, recebeu o endosso da Polícia Federal e do seu equivalente nos EUA, o FBI, que acompanhou as investigações na condição de observador. O resultado foi tão bom que suscitou a desconfiança da opinião pública, ainda relutante em aceitar que a relação dos homens –rapidamente identificados e presos– esgotava o rol dos integrantes do esquema de execução da freira. Tal eficiência podia ser uma manobra de despistamento, para proteger personagens mais graúdos de mais esse consórcio da morte, punindo apenas os atores secundários da trama sangrenta.
Essa hipótese não se confirmou. Ou, ao menos, não foi demonstrada. Mas agora, sete anos e meio depois, um dos personagens do enredo diz que essa história de final pronto e acabado é falsa. O agente especial da Polícia Federal Fernando Luiz da Silva Rayol foi a um cartório de Belém, no dia 14 de junho, ditar uma "escritura pública declaratória”.
O documento equivaleria ao depoimento que ele devia ter dado –mas foi impedido de dar– em 2005 mesmo, no processo judicial que resultou na condenação dos cinco participantes do assassinato. Rayol teria muito a dizer. Afinal, foi um dos integrantes do grupo de investigação da morte de Dorothy e até assumiu o comando das operações.
O agente da PF disse ter sido motivado a relatar "a verdadeira versão do assassinato” em cartório por entrevista dada à revista Época por Amair Fajoli, sentenciado como o intermediário no crime. Sua autoridade para falar a respeito vinha do fato de ter sido designado para fazer a proteção policial da missionária, já ameaçada de morte. A convivência de três meses o teria tornado "amigo íntimo” de Dorothy, ouvindo suas confidências e recebendo suas informações.
O alvo principal da declaração de Rayol é o então delegado da polícia civil em Anapu, Marcelo Luz. Ele mantinha "um esquema de arrecadar propina junto aos fazendeiros da região para que ele mantivesse os posseiros de Dorothy longe de suas terras ou em caso de invasão retirá-los”.
A importância das declarações de Amair (mais conhecido por Tato) à Época se devia ao fato de que ele "era o elo entre o delegado e os fazendeiros com a finalidade de fechar o acordo de propina”. Tato havia se queixado aos integrantes desse grupo, pediu proteção e recebeu do delegado uma arma, "a fim de proteger-se dos sem terra e da missionária”, que já estaria sabendo "da função de Tato no esquema de propina”.
O PF diz que todas as autoridades que participaram da investigação já sabiam "que Dorothy e seus seguidores passaram a perseguir e efetuar represálias contra Tato e que este resolveu precaver-se”.
Com a morte da religiosa, o delegado Marcelo Luz, de imediato, "resolveu por bem, temerária e precocemente, optar, no sai seguinte do crime, pela representação da prisão preventiva de um dos fazendeiros, Vitalmiro Bastos de Moura [conhecido pelo apelido de Bida], antes mesmo de se saber ou as investigações apontarem quem teria sido o executor e o intermediário do crime”.
Dois dias depois do assassinato foi decretada a prisão de um representante do fazendeiro, "antes do executor e do intermediário”. O objetivo do delegado, segundo Rayol, era "desviar a possibilidade de envolvê-lo no crime, no que diz respeito à questão da arma, e deslocar para a ação dos fazendeiros locais”.
O agente da PF esclarece sobre um fato inédito, surpreendente e quase inacreditável: o consórcio criminoso dos fazendeiros "não era em prol de assassinar a freira, mas em prol de financiar a proteção corrupta do delegado local”.
Essa hipótese surgiu durante as investigações, mas os investigadores optaram "pelo meio mais fácil e convincente”, que era responsabilizar os fazendeiros, Para isso, à medida que iam sendo feitas as prisões dos foragidos, as autoridades iam igualmente "adaptando, plantando e negociando com os interrogados versões que objetivavam justificar e fundamentar o decreto de prisão anteriormente exarado contra um dos fazendeiros (Bida), bem como cada vez mais encontrar motivações para o crime por parte dos fazendeiros da região”.
Em março de 2010, Rayol foi autorizado a dar entrevista ao jornalista Carlos Mendes, do Diário do Pará e correspondente de O Estado de S, Paulo, por ter-se declarado sob ameaça de morte. Aproveitou, na expectativa de repercussão, para anunciar que as acusações a Bida e a Regivaldo Pereira Galvão, apelidado de Taradão, "não eram verdadeiras”, e que ambos "eram inocentes”. Os culpados seriam o delegado de Anapu e seus subordinados, acobertados pela comissão de investigação do governo.
Segundo Rayol, Bida disse em seu depoimento que Marcelo Luz "exigia e recebia de cada fazendeiro local a quantia de R$ 10.000,00 com a finalidade de garantir a segurança das suas fazendas”. E o detalhe fundamental: Bida teria sido o único que recusou essa proteção, "uma vez que esse já tinha decisão judicial garantindo-lhe a reintegração de posse de uma área invadida por Dorothy”.
Quando Bida fez essa denúncia, o delegado Waldir Freire, que comandava o grupo, "determinou a retirada imediata” de Marcelo Luz da sala, "objetivando assim preservar sua pessoa e fortalecendo o corporativismo existente”. Rayol lembra que Freire prometeu que as informações de Bida seriam rigorosamente investigadas. Isso nunca aconteceu.
Mas o próprio Rayol acumulava dados em sustentação da sua tese. Como quando transportou de volta à sua casa Elizabeth Coutinho, mulher de Amair Feijoli, o Tato, depois que ela prestou depoimento à polícia. No caminho, Elizabeth lhe confidenciou, "emocionada”, que um dia antes do assassinato o seu marido "estava agindo de uma forma estranha, e vendo a arma na cintura do Amair, fato que nunca tinha presenciado em toda sua vida de casada”, perguntou-lhe por que ele estava armado e ele lhe respondeu que "a arma seria para a sua própria segurança contra as ameaças da missionária”. Disse ainda que "jamais imaginava que seu marido fosse capaz de assassinar alguém”.
Nada disso influiu na investigação e no julgamento porque, na versão de Rayol, a história já estava acertada. O que explicaria a visita de um advogado de Amair à superintendência da Polícia Federal para levar um recado para Bida, que lá estava preso, ameaçando-o de apontá-lo como o mandante do crime se ele não lhe desse duas caminhonetes L200.
Beneficiado pela delação premiada, Tato cumpriu a ameaça. Bida foi preso, mas acabou conseguindo o benefício do regime semiaberto. Dois dos sentenciados estão em prisão semiaberta, um em prisão domiciliar e Clodoaldo, o pistoleiro que acompanhou Fogoió, continua foragido da justiça. É o único nessa condição. Pode estar livre – ou morto. O único em prisão fechada, na penitenciária de Altamira, é Reginaldo Galvão.
Os "fatos novos” revelados por Rayol seriam suficientes para reabrir o caso Dorothy, sustentou o Diário do Pará do dia 22, ao publicar –com destaque na primeira página– a matéria, de Carlos Mendes. O principal acusado, agora servindo em Viseu, contesta. Marcelo Luz diz que as acusações de Rayol são falsas.
Nem teria tempo para montar o esquema que lhe foi atribuído: chegou em Anapu em outubro de 2004, quatro meses antes do assassinato da freira. Quem a indiciou foi seu antecessor na delegacia de Anapu. Pedro Monteiro (referido pelo jornal apenas pelas iniciais, P. M.): "ele pegava propina antes de eu chegar”, acusou, ao ser ouvido por Mendes. No entanto, não há qualquer reclamação contra Monteiro, embora ele tenha recebido "propina alta” para dar cobertura ao dono de uma fazenda "onde mataram vários trabalhadores”.
Marcelo disse que dois dias antes da execução da irmã Dorothy, o carro da delegacia "tinha ido para Belém para fazer a revisão” e que só contava com um escrivão e um investigador para cumprir sua função. Não podia oferecer garantia alguma aos fazendeiros, é o que sugere.
A "versão verdadeira” do agente da PF não é tão verdadeira assim que possa ser simplesmente aceita. Mesmo que cumpra a salutar missão de reabrir um caso que ainda tem pontas soltas no seu enredo, o relato de Rayol tem pouca verossimilhança.
É claro que sua principal intenção é tirar a responsabilidade dos fazendeiros Bida e Taradão. Valdomiro foi incriminado por Luz porque rejeitou a proposta de segurança paga. E Reginaldo é simplesmente um inocente. Mesmo os outros fazendeiros da região se reuniram não para matar a freira, mas para se defender de suas investidas.
O revólver usado na execução de Dorothy era do delegado, que o deu a Tato para ele se defender da freira e dos seus aliados, que seriam os verdadeiros agressores dos circunspectos donos de terras. A esposa de Tato jura que ele nunca fez mal a ninguém e jamais o faria, mas estava nervoso na véspera, andando armado, com medo de algum ataque. Se Rayol puder desenvolver sua tese, talvez surja com nova informação: Tato pode ter dado o revólver a Rayfran, que tomou as dores do amigo. Ou surgirá uma versão ainda mais extravagante?
O agente da PF age como se fosse personagem imparcial da história, um profissional que, de tanto testemunhar fatos e absorver informações, decidiu ser um paladino da verdade e um protetor de inocentes injustiçados por um complô de autoproteção, um lance de corporativismo.
Mas Rayol não é esse personagem. Ele foi indicado como testemunha de defesa de Bida no processo. Só não depôs, como ele próprio declara, porque as autoridades, ao perceberem a posição que ele iria assumir, mandaram retirá-lo da sala de testemunhas. Ele se declara amigo de Dorothy, mas iria ficar ao lado de alguém que, em sua própria versão, a freira sabia que não tinha boas intenções a seu respeito.
A história é tão ao gosto dos dois fazendeiros presos, indiciados e julgados como mandantes do assassinato que uma semana antes de Rayol ir ao cartório registrar suas declarações, Arnaldo Lopes de Paula, advogado de Bida, o procurou, supostamente por ter ouvido suas bombásticas declarações numa entrevista que deu a uma emissora de rádio.
Rayol confirmou o que dissera e mostrou uma fita com a gravação da entrevista. Dispôs-se a ir depor em juízo, o que bastou para o advogado requerer ao juiz da 2ª vara do tribunal do júri para ouvir o depoimento do policial, na presença do promotor Edson Cardoso. Com mais esse documento, o advogado pretende pedir a revisão criminal ao tribunal de justiça, com o que o caso Dorothy seria reaberto para inocentar Bida e Taradão.
O intrigante é que o agente da PF chegou a essa versão nova sozinho, enquanto os outros participantes do grupo de investigação tiveram conclusão distinta. Rayol sustenta que a versão criada para a condenação dos acusados era nada menos do que uma manobra para proteger o delegado corrupto. Mas o outro agente da PF no grupo, Ualame Filho, e os procuradores estaduais de justiça Saulo Brabo e Lauro Freitas, se prestaram a essa farsa? Ou este papel quem o está desempenhando é o próprio Rayol?
De qualquer modo, sua inconvincente história bem que poderia levar as autoridades a checá-la. No mínimo, conseguirão novas informações sobre o assassinato e o papel do poder público, em particular da polícia, nesse tipo de ocorrência. Os fazendeiros conseguiram se livrar de uma adversária difícil, mas é pouco provável que a sociedade tenha sequer identificado seus maus representantes na trama. É por isso que esses exemplos de brutalidade, uma vez cessada a onda de indignação e protesto, não conseguem servir de indutor das mudanças necessárias.
A solidariedade mundial pela irmã Dorothy Stang forçou o poder público a dar respostas ao crime. O governo federal foi rápido, deixando um vácuo para a administração estadual paraense. Além das providências de praxe nessas circunstâncias, prometeu instalar uma espécie de gabinete federal da presidência em Belém (ou Altamira, não chegou a definir) e interditar áreas conflituosas (abrangendo 8,2 milhões de hectares), dentre as quais 3,7 milhões de duas novas unidades ecológicas na região conflagrada da Terra do Meio.
Nada disso foi feito. O sacrifício de irmã Dorothy foi em vão?

Fonte: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&langref=PT&cod=69399

Nenhum comentário: