quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Desenvolvimento rural sustentável em debate

O cenário externo explicita cada vez mais as contradições do modelo de desenvolvimento mundial, em que crises recorrentes ganham relevância na agenda política, como é o caso recente do problema alimentar.

Há mais de uma década, os movimentos sociais atuantes no meio rural brasileiro, os órgãos governamentais, os agentes de desenvolvimento rural, as ONGs e outros atores vêm promovendo discussões e debates visando a construir um Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário, com a finalidade de orientar a implementação de políticas públicas, além de construir espaços de concertação social capazes de promover a sustentabilidade das atividades econômicas e a preservação ambiental.

Ao longo dos anos de 2001 e 2002, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS) organizou diversos debates em várias regiões do país com o objetivo de construir o referido Plano. Este processo acabou culminando na elaboração de um documento-síntese; porém, sem a realização da Conferência Nacional que transformaria o mesmo em um documento oficial a ser seguido pelos distintos governos.
No entanto, a partir de 2004, os debates visando à construção do Plano Nacional foram retomados pelo CONDRAF – nova sigla do mesmo conselho –, com a realização de diversos fóruns de discussões. Nesse momento, destacaram-se o Seminário Internacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (2005); a Conferência Internacional de Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural da FAO/ONU (2006); a Plenária Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (2006); as Conferências Municipais, Intermunicipais e Territoriais (2007); os Eventos Temáticos Setoriais Nacionais (2007); e as Conferências Estaduais (2008).

Todo esse processo culmina na realização da 1ª Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (1ª CNDRSS) no final de junho de 2008 na cidade de Olinda (PE). O objetivo da conferência é a formulação de uma política nacional de desenvolvimento rural que contemple tanto as diversidades sociais como as diferenças regionais, além de valorizar o protagonismo dos atores sociais.

Para tanto, a 1ª CNDRSS tem como tema geral “Por um Brasil Rural com gente: sustentabilidade, inclusão, diversidade, igualdade e solidariedade”. Esta temática procura mostrar ao conjunto da sociedade o papel ainda relevante do “Brasil Rural” no âmbito do desenvolvimento nacional.
A 1ª CNDRSS foi realizada num momento importante da agenda política nacional e internacional. Pelo lado nacional, está em curso uma ampliação do debate sobre desenvolvimento, merecendo destaque os temas da participação social, da universalização dos direitos sociais, da segurança alimentar e nutricional; da preservação dos recursos naturais, da promoção da igualdade de gênero, raça e etnia, e da incorporação da abordagem territorial do desenvolvimento. Já pela ótica internacional, o cenário externo explicita cada vez mais as contradições do modelo de desenvolvimento mundial, em que crises recorrentes ganham relevância na agenda política, como é o caso recente do problema alimentar.

Esta percepção culminou na formulação de um documento-base para a 1ª Conferência Nacional, o que foi organizado a partir de um ponto de partida (“O Brasil Rural que se tem hoje”) e de um ponto de chegada (“O Brasil rural que se quer”). Ou seja, parte-se de uma análise sobre a realidade atual do “rural” visando transformá-la no futuro.

Neste sentido, o diagnóstico mostra que o “Brasil Rural” comporta uma diversidade de ambientes físicos, recursos naturais, ecossistemas, sistemas agrários, etnias, culturas, relações sociais, padrões tecnológicos, formas de organização social e política, linguagens, simbologias, etc. Tais elementos evidenciam a não uniformidade do espaço rural brasileiro, e, ainda que determinados segmentos econômicos queiram transformá-lo num espaço particular de acumulação de capital, o “Brasil Rural” se mantém diverso, plural e heterogêneo.

Esta heterogeneidade se revela pela convivência, lado a lado, de projetos contraditórios que concorrem desigualmente num mesmo espaço social. Esta “convivência conflitiva” remonta às origens históricas e institucionais do Brasil e representa as diferentes formas de desigualdade que marcam a estrutura social brasileira, particularmente no meio rural.

Por isso, a 1ª CNDRSS busca superar a visão tradicional de que o “Brasil Rural” seja marcado apenas pela dicotomia entre o ‘atraso’ e o ‘moderno’, e tenta afirmar o papel relevante de todos os setores econômicos e sociais na construção do Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário. Para alcançar esses objetivos, tal proposição está embasada na abordagem territorial, tendo as dimensões da sustentabilidade econômica, social, política, cultural e ambiental como referências básicas.

Além dessas dimensões da sustentabilidade, a 1ª CNDRSS assume como estratégico cinco temas: 1) o da “inclusão social”, como instrumento essencial no processo de democratização da sociedade brasileira; 2) o da “igualdade”, como resultado das transformações nas relações entre homens e mulheres; 3) o da “solidariedade”, como responsabilidade coletiva na luta para superar o individualismo; 4) o da “diversidade”, como reconhecimento da existência de diferentes segmentos sociais e da pluralidade de uso dos recursos naturais; e 5) o do “combate às desigualdades sociais e regionais”, destacando-se como ponto central o compromisso ético e político de combater a fome e a pobreza.

O conjunto desses temas deverá compor o arcabouço básico do Plano Nacional, cuja construção está assentada em quatro eixos estratégicos que comentaremos a seguir.

1º Eixo: Desenvolvimento socioeconômico e ambiental: que procura discutir, de forma combinada, a exploração econômica com a preservação ambiental, partindo da premissa de que é possível construir um projeto nacional sem destruir o meio ambiente e a biodiversidade, ao mesmo tempo em que se valorize a apropriação dos frutos do trabalho humano a partir da cooperação e da solidariedade.

2º Eixo: Reforma agrária e acesso aos recursos naturais: que mostra a importância da construção de um Plano Nacional assentado na democratização da propriedade da terra e no livre acesso aos recursos naturais existentes no espaço rural. O acesso geral e irrestrito a estes bens simboliza a possibilidade concreta de mudanças no quadro histórico de exclusão existente no país e, particularmente, no meio rural.

3º Eixo: Qualidade de vida no Brasil Rural: que mostra claramente a necessidade de ampliação dos investimentos públicos nas áreas rurais, como premissa para o sucesso de um plano nacional sustentável e solidário, por se entender que garantir a qualidade de vida digna às famílias é fundamental para a construção de um novo projeto de desenvolvimento para o país.

4º Eixo: Participação política e organização social: que procura destacar a importância da articulação político-institucional, das novas institucionalidades, da participação da sociedade como protagonista central e das relações entre União, estados e municípios, no processo de construção do “Brasil Rural que se quer”.

Com isso, entende-se que é possível construir um Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (PNDRSS) assentado num processo que articule distintos interesses dos grupos sociais e de setores econômicos presentes no meio rural, suas práticas culturais, atividades produtivas e ações voltadas à preservação dos recursos naturais. São os resultados da Conferência Nacional que demonstrarão se este caminho é possível de ser construído a partir da realidade brasileira atual.

Sabe-se, a priori, que a construção de uma Política Nacional desta envergadura necessariamente irá enfrentar conflitos econômicos e políticos que fazem parte do processo histórico de ocupação do território rural; até mesmo porque esses conflitos têm origem na concentração da propriedade da terra e na exclusão social de segmentos de trabalhadores rurais, particularmente dos agricultores familiares, pescadores e dos povos e comunidades tradicionais.

Neste sentido, resta saber se esta Política Nacional que resultará da 1ª Conferência Nacional terá capilaridade para enfrentar as contradições históricas acima mencionadas ou se manterá um caráter residual e subordinado aos interesses hoje prevalecentes no meio rural brasileiro.


Lauro Mattei é Professor do curso de Graduação em Economia e do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFSC e pesquisador do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura/OPPA/CPDA/UFRRJ. E-mail: mattei@cse.ufsc.br

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