domingo, 15 de janeiro de 2012

Marx, o 19/20 e o kirchnerismo

Quando Marx diz que “tudo que é sólido desmancha no ar" está se referindo a mudanças de larga duração. Os dias 19 e 20 (de dezembro de 2001, que provocaram a queda do governo De la Rúa) cruzaram uma fronteira na Argentina. Estava claro que, a partir dali, as coisas já não seriam as mesmas. Foi se desvanescendo o edifício dos lugares comuns do que devia ser uma democracia, do que significava ser cidadão, os direitos, as obrigações. Foi um movimento liberador essencialmente destrutivo, de negação. O artigo é de Amílcar Salas Oroño.

1. Em Marx, as imagens jogam um papel decisivo: permitem ao leitor ter em mente uma figura melhor das dimensões, dos espaços e do tempo do drama contido no conflito entre as classes. São recursos quase literários, líricos, ao serviço da análise das contradições e dos antagonismos do capitalismo. Muitas vezes esse jogo de imagens e palavras é intermitente: às vezes querem dizer uma coisa e às vezes outra; são como morcegos: dependendo da sombra, podem ser pássaros ou ratões. Mas essa insistência de Marx em usar símbolos e metáforas variadas em sua ciência vem de sua própria percepção de que a própria realidade é um conjunto de signos. Os signos da rua. A luta de classes se reorganiza, também, pelo que é posto pelos planos da supraestrutura política e ideológica e pelas palavras da rua, por como os imaginários sociais ordenam as ações cotidianas, desde as domésticas até as mais transcendentes.

2. O pertencimento a uma classe social, a um estamento, um determinado grupo, não é uma delimitação milimétrica, formal e estática, mas sim dinâmica e variável; os contornos das classes são móveis. O nó de nossa encruzilhada coletiva de uma uma década atrás foi o fato de que o neoliberalismo levou as coisas a tal ponto que ninguém – que não fosse das elites ou dos setores dominantes – sabia muito bem qual era sua situação. Por todos os lados, reinava a incerteza. As identidades de classe se tornaram difusas – umas mais do que outras – ou então se degradaram em distinta intensidade, ao compasso de um enorme mural onde a pobreza devolvia pequenos fragmentos desoladores desde diferentes regiões do país.

Desde meados dos anos 1990, tudo foi uma sequência de relatos dolorosos, onde a infância se transformava em sinônimo de pobreza, a discriminação pela aparência no substantivo juvenil e a vergonha econômica do pai em um lar sem alegria. De Tartagal a Neuquén, de San Justo a Rosario, as notícias da rua falavam majoritariamente de decepções pessoais, progressos impossíveis.

3. Neste contexto, a luta de classes não se estruturou em um antagonismo de um bloco frente a outro, com canais de negociação; foi tudo mais desordenado e confuso. Apareceram, sim, práticas de classe (subalterna). Houve práticas de classe dispersas, solidárias, reparadoras. Mecânicas coletivas, engenhosas, de mão em mão, que não construíram um sujeito político específico, mas que tiveram a potência suficiente para perfurar a rede ideológica que cobria a dialética social: símbolos e interpretações contrárias às que propunha o neoliberalismo. O 19 e 20 de dezembro (de 2001) como processo histórico – isto é, o que vem antes de 2001 e se projeta para adiante – quebrou aquele molde autodisciplinador no qual havia sido capturado o sentido de nossa democracia.

Emblematicamente, fez isso anulando a legitimidade do que constitui o último recurso do domínio estatal, o estado de sítio.

Os dias 19 e 20 (de dezembro de 2001) cruzaram essa fronteira. Estava claro que, a partir dali, as coisas já não seriam as mesmas. Foi se desvanescendo o edifício dos lugares comuns do que devia ser uma democracia, do que significava ser cidadão, os direitos, as obrigações. Foi um processo, um movimento liberador essencialmente destrutivo, de negação: negou-se a naturalização daquelas imagens, o convívio com essa realidade produtora daquelas imagens. No meio, um coro de vozes pedindo “ordem”: os setores conservadores, as elites.

4. Aberta a fenda, a elaboração dos novos moldes, parâmetros e linguagens democráticas prosseguiu durante o kirchnerismo, na base de uma dialética substancialmente distinta. A reafirmação de novos imaginários não surgiria desde as apostas em práticas de classe em uma sociedade desconjuntada, mas sim desde as decisivas alavancas impostas pela interação entre políticas públicas, governo e estrutural social. O Estado entrou em cena para prosseguir, desde esse ponto de vista, com a confecção de uma nova metáfora da democracia; como socializador, integrador, normatizador e legislador.

Obviamente é outra a contundência quando o Estado é que se converte no organizador material e discursivo da realidade: ao mesmo tempo que recompôs certezas econômicas e identidades sociais, mediante um amplo leque de medidas heterodoxas e originais, dando um novo contorno inclusive as relações de pertencimento de classe, instalou novos princípios de reconhecimento intersubjetivo, revolucionando valores, impulsionando outras imagens: “nós podemos casar com os mesmos direitos”, “o trabalho da dona de casa é um trabalho”, etc. O kirchnerismo é, entre outras coisas, também um aporte a esse mapa democrático.

5. Vivemos hoje em um outro país que aquele de 2001. Os signos da rua e as propostas dos poderes políticos são outras. Há uma década, Ines Pertiné de De la Rúa armava um apaziguador presépio gigante na porta da Casa de Governo para contrapor a atmosfera social. Hoje, ali, entrando no prédio, há um salão com a imagem do Che, de Zapata, de Tupac Amaru...Naquele sentido não superficial nem secundário para Marx – o da produção de signos, representações coletivas e significados do que pode ser uma sociedade - , o trajeto que vai daquelas práticas de classe aos efeitos que pode produzir a socialização política estatal do kirchnerismo mostra uma conexão interna de sentido histórico; talvez sejam momentos de um mesmo processo, o da democratização da sociedade argentina.

Quando Marx anuncia que “tudo que é sólido desmancha no ar e todo sagrado é profanado”, está se referindo a mudanças de larga duração, não a um fato específico nem a um relâmpago pontual da história. A derrubada daquele universo (simbólico) democrático que tivemos de 1983 a 2001 também levará seu tempo: ainda há elementos que sobrevivem, há palavras, ideias e comportamentos que resistem a ser substituídos. Mas a impressão é de que, pelas imagens que nós mesmos refletimos, alguns passos foram dados. À maneira de uma toupeira, laboriosa e animada.

(*) Cientista político da Universidade de Buenos Aires.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

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