segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O País das urgências e o aniversário de Darwin

Todo ano, muitos se divertem com as respostas dadas por candidatos em exames vestibulares, esquecendo que o que é ali regurgitado é resultado do declínio do ensino primário e secundário e, ainda mais grave, mesmo os estudantes que forem admitidos na universidade trarão consigo os resultados da cada vez mais deficiente educação que tiveram. Cento e cinquenta anos depois da publicação da [i]Origem das Espécies[/i], quantos calouros terão alguma idéia do que se tratou na obra? O artigo é de Fernando J. Cardim de Carvalho.

O Brasil é um país de urgências. Reais, prementes. Era urgente controlar a alta inflação que corroeu a economia nacional por três décadas. Era urgente evitar a crise do sistema bancário resultante do controle da inflação. Foi sem dúvida urgente tomar medidas para evitar o contágio das crises mexicana (de 1994), asiática (de 1997), russa (de 1998), etc, ao qual nos expomos quando os liberais de FHC resolveram desmontar os controles que limitavam os movimentos de capitais de curto prazo para dentro e para fora do país. Era urgente, naturalmente, combater a fome. É urgente, agora, conter e reverter a crise que herdamos dos americanos, e assim por diante.

Nos movemos de urgência em urgência, e não é surpreendente que assim seja, já que continuamos a ser um país em desenvolvimento, com grandes demandas e enormes vulnerabilidades, mesmo que algumas destas últimas sejam auto-infligidas, parte daquilo que há poucos anos atrás se chamava de herança maldita, resultante da adesão, com o entusiasmo e ortodoxia dos recém convertidos, a um liberalismo que já dava sinais de exaustão no resto do mundo, mas que chegou aqui, pelas mãos de FHC, e continuou durante o palloccinato, em meados dos anos 1990.

É natural atacar primeiro os problemas urgentes, mas é também comum a tendência a considerar urgentes apenas os problemas cuja solução pode ser conseguida no curto prazo. Há uma certa inclinação a confundir problemas de longo prazo com aqueles cuja solução pode ser encaminhada “mais tarde”. Assim, é urgente, por exemplo, atacar o problema da fome. Como dizia o saudoso Betinho, quem tem fome tem pressa. Mas o problema da fome não é apenas o problema da provisão imediata de alimentos a famílias famintas, ele é também o problema do emprego, que dará solução durável e sustentável ao problema da fome. É preciso urgentemente combater a crise que nos ataca do exterior, mas o combate bem sucedido à crise não se esgota em medidas de criação de emprego emergencial, das famosas frentes de trabalho, ou assistenciais, ele exige a implementação de projetos que garantam que a economia será capaz de manter esses empregos mesmo quando o impulso inicial se esgotar, como fatalmente ocorrerá em algum momento.

É por essa razão que a hora é de relizar investimentos em infra-estrutura, por exemplo, capazes não apenas de ter efeitos sobre a demanda agregada mais significativos que qualquer outro gasto, mas tambem de modernizar a estrutura produtiva da economia brasileira, permitindo a ela alcançar outro patamar de produtividade e, assim, de potencial produtivo.

Finalmente, é preciso evitar crises financeiras, provendo liquidez ao sistema bancário, mas é necessário que isso seja feito concomitantemente a uma reavaliação dos resultados do processo de desregulação financeira que nos tornou tão vulneráveis, por exemplo, à entrada e saída de capitais da bolsa de valores. Não há contradição entre urgência e relevância ou entre urgência e alcance das medidas que devem ser tomadas para atacar os problemas. O combate aos problemas ditos “de longo prazo” não é para ser deixado para depois da urgência passar, ele é parte essencial do combate aos problemas presentes.

Uma das mais essenciais urgências que enfrentamos é o assustador estado da educação no país, especialmente de primeiro e segundo graus. Era urgente trazer as crianças para a escola (até para poder garantir que elas seriam alimentadas pela merenda escolar), mas a reconstrução das escolas enquanto escolas não tem sido vista como urgente ou prioritária. As escolas públicas sofreram um processo de decadência acentuada nas últimas quatro ou cinco décadas, com a desvalorização da figura do professor primário e secundário, a redução de salários e o consequente processo de desqualificação docente, a transformação dos prédios escolares em espaço de banditismo de toda espécie, etc.

Aumentar o número de crianças e adolescentes matriculados nas escolas é obviamente uma tarefa urgente, mas recuperar o papel das escolas como provedoras de educação é igualmente urgente, não é algo a ser deixado para “mais tarde”. A queda dos padrões de ensino com a decadência da escola pública (e não nos enganemos, as escolas privadas acompanharam, ainda que menos dramaticamente esse processo de decadência, como qualquer professor de universidade que receba esses estudantes pode testemunhar) não apenas impede a transmissão das noções de cidadania necessárias à sobrevivência das formas democráticas de convivência e prática política, mas também o conhecimento mínimo de matemática, ciências, línguas, inclusive, naturalmente, o portugues, sem o qual a própria sobrevivência do país estará ameaçada.

O desprezo por essas preocupações, sua “não urgência”, é notável. Veja-se a discussão recente que acompanhou a fixação de pisos salariais para professores. Delegados de polícia, funcionários dos poderes judiciário e legislativo, auditores fiscais, técnicos de orçamento e gestão do governo, e, por que não, mesmo professores universitários como este articulista, são sempre priorizados, suas reinvindicações salariais são sempre consideradas urgentes. Professores primários e secundários não. Ninguem se opõe a que sejam pagos um pouco melhor, pelo menos em público, mas poucos se preocupam ou efetivamente se mobilizam para garantir salários melhores e, ao mesmo tempo, exigir uma qualificação maior desses docentes, medir sua produtividade e os resultados do investimento, etc.

Mais notavelmente ainda, poucos se preocupam com o conteúdo do que é ensinado. O ensino de ciências e matemática, em particularmente, passou por uma forte degradação. Não se trata aqui de discutir a pesquisa universitária, de ponta, mas a qualificação e o conhecimento ao alcance da população como um todo. Nos Estados Unidos, as iniciativas de grupos religiosos fundamentalistas voltadas para a modificação do ensino de ciências na escola primária e secundária, particularmente no que respeita à biologia moderna e o papel da teoria da evolução, são sempre recebidas com escândalo e forte e imediata reação do público. Pais se preocupam que seus filhos recebam uma educação obscurantista, que venha a prejudicar não apenas sua qualificação profissional mais tarde, mas tambem suas chances de entender e acompanhar as mudanças dos tempos.

Aqui, tivemos uma governadora recente do Rio de Janeiro que se declarou criacionista, para quem evolução é apenas uma teoria, e que reintroduziu o ensino obrigatório de religião na escola pública, contratando para tanto centenas de professores, enquanto as escolas apontam todo ano a falta de professores de matemática e ciências. Nem a profissão pública de fé criacionista, nem o uso de recursos para a contratação de professores de religião em detrimento dos professores de matemática e ciências parecem ter chocado os cidadãos do estado.

Não há investimento em infraestrutura, na introdução de inovações ou no quer que seja que possa cumprir a promessa de superar o subdesenvolvimento enquanto a educação primária e secundária não for prioridade. Praticamente todas as tecnologias modernas exigem alguma flexibilidade e preparo para serem operadas e isso não é obtido nas universidades, e sim no ensino pré-universitário. Recuperar a escola passa, naturalmente, pela recuperação do professor, mas é preciso que isso seja acompanhada por uma forte exigência de melhoria de conteúdos e de resultados.

O que tudo isso tem a ver com o bicentenário de Darwin, comemorado em todo o mundo neste dia 12 de fevereiro?

Em Lisboa foi aberta ao público no dia do aniversário de Darwin uma grande exposição, patrocinada pela Fundação Gulbenkian, celebrando não apenas um dos maiores cientistas dos tempos modernos (ou de qualquer tempo, na verdade), mas também suas idéias, informando aos visitantes o que pensavam seus antecessores e seus sucessores. Nessa exposição, que o próprio curador da mostra que a inspirou, do Museu de História Natural de Nova York, qualificou de magnífica, mostra-se que, como disse um dos maiores biólogos do século passado, Theodosius Dobzhanski, nada faz sentido na biologia moderna sem a teoria de evolução, como proposta por Darwin em sua Origin of Species, publicada em 1859 (sim, comemoramos também os 150 anos da sua publicação).

A exposição é notável, mas ainda mais notável é que, dois meses antes de sua abertura, já havia sido esgotado o calendário de visitas de escolas até seu encerramento. A primeira de uma serie de palestras que serão oferecidas ao público, pelo curador mencionado, Niles Eldridge, foi feita para um auditório lotado por estudantes de escolas secundárias. A interação sistemática entre cientistas e estudantes pré-universitários e a promoção de atividades que criem um contexto estimulante é uma tarefa que, entre nós, infelizmente nunca chegou a se tornar urgente. Ao contrário, damos de ombros quando um ocupante de poder executivo se declara criacionista, e não nos comovemos com a necessidade de recuperar e defender a qualidade do ensino primário e secundário.

Nós tivemos nossa própria exposição Darwin em 2008, em São Paulo e Rio de Janeiro, graças a uma instituição privada, mas seu impacto foi infelizmente menor e encerrou-se junto com a mostra. Do mesmo modo, programas de televisão e artigos em jornais diários chamaram a atenção para a data, mas como pouco mais do que a efeméride do dia, a curiosidade da vez. Em particular, ainda pouco se compreende da necessidade de superar o isolamento entre universidades e escolas primárias e secundárias no Brasil e poucos professores universitários provavelmente considerariam a possibilidade de engajamento em atividades dessa natureza. Todo ano, muitos se divertem com as respostas dadas por candidatos em exames vestibulares, esquecendo que o que é ali regurgitado é resultado do declínio do ensino primário e secundário e, ainda mais grave, mesmo os estudantes que forem admitidos na universidade trarão consigo os resultados da cada vez mais deficiente educação que tiveram. Cento e cinquenta anos depois da publicação da Origem das Espécies, quantos calouros terão alguma idéia do que se tratou na obra?

Fernando Cardim é economista, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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